COLUNA TEXTOS E TEXTOS - Por Geraldo Lima
A
VOZ
O
telefone toca e saio correndo do banheiro enrolado na toalha. Chego ainda a
tempo de atender e ouvir do outro lado a voz que vem me aporrinhando há dias.
Voz de homem, fazendo-se de educado e sedutor. "Olá, boa-noite, tudo bem
com você?", ouço e, de imediato, sinto vontade desligar na cara do
sujeito. (Já me ergui da mesa às pressas, em meio à refeição, para me deparar
com essa mesma voz de telemarketing brotando de um universo paralelo, moldado
pela tecnologia e pela frieza dos negócios.) Sinto
vontade, mas não o faço. Desta vez estou disposto a ir até o fim, para ver os
desdobramentos desse enredo já gravado. A voz aguarda minha resposta. Deve
pensar: que cara mal-educado, mas, ainda assim, continua. "Você tem TV por
assinatura?". Mantenho-me calado, só aguardando as próximas falas do ser
eletrônico que ousou me tirar do banho. Não há respiração do outro lado. Parece
mesmo não haver vida. Só máquinas e intenções frias e extremamente calculadas.
Deve ter pensado que eu, além de mal-educado, tinha um baixo nível de
escolaridade, pois fez uma pequena mudança na pergunta: "Você tem algum
tipo de TV a cabo?". Não sei se foi impressão minha, mas o tom de voz
estava mudando, parecia tornar-se impaciente, meio rude. Mas, como era possível?!
Estava tudo tão calculado assim? Essa voz era capaz de exprimir algum tipo de
emoção? Comecei a gostar do jogo, a sentir (ainda que fosse ilusório) que
estava ganhando. "A NET agradece a sua atenção!", e dessa vez não
tive dúvidas: a voz eletrônica estava irritada. A voz eletrônica deixou escapar
algum tipo de sensibilidade, de emoção pós-humana. Ah, da próxima vez, só por
curiosidade literária, vou responder uma ou outra das suas perguntas para ver
se essa previsibilidade eletrônica é infinita.
(*) Geraldo
Lima é
professor, escritor, dramaturgo, roteirista e colabora com o Jornal de
Sobradinho.
Nenhum comentário
Postar um comentário