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Coluna Interseção Textual

EXPIAÇÃO

* Por Joel Pires


Estava decidido: aquela seria a última noite de incômodo na casa de Dona Dinha. Esta pobre senhora já estava cansada dos barulhos que ultimamente a atormentavam. Era uma algazarra tremenda – pisadas, gritos, correria, brigas. Já não podia mais dormir. Sua vida virara um inferno. Tudo culpa daqueles que ousam perturbar o sono alheio a qualquer hora da noite. Essa rotina ruidosa massacrava a pacata dona de casa. Impossível ignorar aquela invasão domiciliar.

A situação incômoda já se arrastava há dias e a católica senhora, na sua compostura cristã, resignava-se: esperava em Deus alguma solução. Rezava, lia a Bíblia nos momentos insones. Até fez promessa na esperança de voltar ao sossego habitual. Às vésperas de completar um mês naquele desassossego, levantou-se do pequeno altar perante o qual se prostrava todos os dias – era devota fervorosa de Santa Luzia – e se dirigiu a um pequeno cômodo onde guardava um velho baú de vime trançado.

Ela morava só, herdeira da solidão. Tinha apenas uma irmã, com quem mantinha correspondência – a carta ainda era o meio utilizado –, e a visitava muito esporadicamente, pois tinha que deixar o interior de Minas para atravessar o norte rumo aos confins do Pará. A idade avançada não lhe permitia certas aventuras. Acostumara a viver sozinha no seu canto. A casa era pequena, o suficiente para abrigar duas camas, um armário empoeirado, algumas cadeiras, mesa, uma geladeira antiga e um velho fogão. Havia também uma tevê que ela mantinha cuidadosamente coberta com um pedaço de pano puído pelo tempo. Gostava de programas de culinária.

A algazarra continuava lá fora. Que falta de respeito era aquela. Quanta gritaria. Difícil dormir com tamanha confusão. Mas os dias de insônia estavam contados. Finalmente Dona Dinha, a viúva que não teve filhos, resolveria de vez aquele problema. Já estava cansada de tudo. As noites sem dormir afetaram-lhe a mente, combalida pela idade. A saúde não andava boa. Agora ela estava ali, diante do baú, ainda insone da noite anterior. As razões eram fortes. As ideias embaralhavam-se na cabeça. Um pensamento foi crescendo em meio à confusão. Tornara-se imperioso. Não teve escolha: abriu o baú e pegou um pequeno embrulho de saco de pão, dirigiu-se à cozinha e, como quem prepara um bolo, pôs-se a misturar o conteúdo a uma massa que ela retirou da geladeira.

Evocando seus dotes de cozinheira, ela fez cuidadosamente pequenos bolinhos de carne. Reservou-os. Ligou o forno e, enquanto esperava o ponto ideal de aquecimento, passou um bom tempo andando pelo quintal da casa. Após alguns minutos, ela retornou e, como a temperatura já estava boa, untou as formas, salpicou alguns temperos e preparou o assado. O dia já havia clareado e entre um afazer e outro, o almoço se aproximava. Então ela convidou os visinhos para um banquete especial: coelho assado ao molho de laranja. Todos se deleitaram com aquela iguaria, e lamberam os dedos, menos uma mocinha triste, que ficara na sala vendo tevê: seus lindos gatos não retornaram para casa naquela noite. Findo o repasto, estando a anciã só novamente, ao fechar a porta, avistou num canto da pequena casa o indício da carnificina: um chumbinho que ela displicentemente deixou cair.

(*) Joel Pires é Prof. Português FEDF, Escritor e colaborador do Jornal de Sobradinho

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