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Interserção Textual por Joel Pires



Assim como falham as palavras quando querem exprimir o pensamento, assim falham os pensamentos quando querem exprimir a essência de uma realidade.

(Fernando Pessoa)

LA PIETÀ
O sol ainda brilhava naquela segunda-feira, quinze de março. As pessoas passavam alheias ao que se trama nas mentes sombrias. Os carros passavam. A vida passava no cotidiano da cidade de Sobradinho. O nome já não reflete o clima calmo de cidade pequena. O sufixo não mais se coaduna com a expansão dessa satélite. Os aparatos do Estado não acompanharam o seu crescimento, situação que se repete Brasil afora. A ausência do poder público é uma realidade ainda hoje. Fim de tarde. Uma papelaria aberta: materiais escolares. Um jovem à porta. Já não pode mais comprar cadernos, nem estudar. A multidão em volta. O cochichar das pessoas. A curiosidade mórbida. O corpo estendido no chão. A demora. O suspiro derradeiro. Havia corrido alguns metros antes de cair agonizando. Um garoto. Bermuda e camiseta. Os chinelos. A falta de ação. A expressão congelada. O olhar de pavor. O corpo franzino, as formas magras. O rosto cavado de susto. A palidez. As pessoas passam. O tempo passa. A omissão. É tarde. O sol caminha para o ocaso. Dois tiros. O fim de um sonho. A futilidade de um gesto. O vermelho gritando no chão. A espera. O triste espetáculo. A mãe... A desolação. O mundo congela-se ao redor. O silêncio absoluto. A falta de ação. Um grito vara o espaço. O lamento ecoa no universo. As mãos, o olhar, o gesto. Pietà. A mãe toma o filho no colo, sentada no chão. A dor. A imagem do horror. O choro de outras mães. Onde está o Pai? A noite cai sobre a cidade. A humanidade parece findar-se.

(*) Joel Pires é professor, escritor e colaborador do Jornal de Sobradinho

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